Ao longo da historia, embora por inúmeras vezes se tenha observado a moldagem social adaptando-se à determinação das normas – contrariando a premissa de que deveria ser o oposto: a norma adequar-se à sociedade, uma vez que o Direito decorre dos costumes, ou não decorre? –, mesmo que forçosamente, em nosso tempo, isso deveria ser inadmissível.
Inegável que ainda restam resquícios fortíssimos desse imperialismo legal em nosso sistema jurídico, uma vez que a herança lusitana em nossa tradição patrimonialista e privatista é pontual. A supremacia do interesse capitalista, a estrita preservação e a tutela dos bens e a hegemonia da vontade dentro dos contratos são singelos reflexos que encerram ecos de legislações ainda pretéritas, como o Código Napoleônico e Código Canônico Medieval.
Todavia, do ponto de vista social, esta influência nem sempre é bem vinda, pois a adequação forçosa da sociedade à norma afronta a espontaneidade do comportamento humano. E, certamente, não há maior exemplo para tanto do que o próprio instituto do matrimônio, hoje tido como o ato profundamente humano de constituir família e que, em decorrência dos preceitos católicos, passou a ser tido como ato solene, sacral e, sob o prisma civilista, extremamente formal.
Assim, tanto a matrimônio, como outras formas de união, hão de sempre adaptar-se ao “tipo” legal do casamento, dando ensejo a uma completa inversão de valores, pois prioriza-se uma formalidade em detrimento do homem, criminalizado por não amoldar-se a “sociedade disciplinar” da qual sempre “dependemos”, em decorrência de premissa ideológica panóptica – de Jeremy Bentham e, posteriormente, Michel Foucault -, onde a influência da institucionalização dos comportamentos abrange toda uma gama de regulações sociais, especialmente em relação as formações familiares, descortinando diametral oposição entre o que se faz na prática e o que se prevê nos códigos.
Modernamente, quando se vive a expectativa da elaboração de um novo Código Penal, que vem sendo debatido sob a promessa e necessidade de compilar grande parte da legislação penal extravagante, a comissão de juristas responsável pelo Anteprojeto de 2012 silenciou acerca da criminalização dos crimes contra a família, atendendo à atual política legislativa segundo a qual não poderia se utilizar da ingerência penal para, indiretamente, trazer à atuação do Direito Penal problemas referentes ao livre planejamento familiar e à paternidade responsável, uma vez que o Direito Civil, em especial o novel Direito das Famílias e, por vezes, o Direito Administrativo, tutelam de forma mais eficiente tais situações.
Ademais disso, é indiscutível a grande e fundamental importância da família (como bem jurídico-penal) para o Direito e para a sociedade, especialmente em relação aos seus membros, que de tão valorosa e essencial, é digna da utilização das mais eficazes “ferramentas” jurídicas para sua tutela. O que deve ser feito, porém, com a devida racionalidade, a fim de que os excessos protecionistas não acabem tornando-se prejudiciais.
Assim sendo, com fulcro na relação de desproporção existente entre a gravidade do fato (crimes de contra a família) e a gravidade da pena (criminalização das condutas de bigamia – art. 235), propugna-se, neste estudo, que a tutela legal à família seja dada, em especial, mediante a descriminalização de tal delito, uma vez que não há correlação protetora entre a família e a criminalização de tal conduta, pois a presente cominação penal, a pretexto de salvaguardá-la, presta-se somente a segregar a manchar os laços fraternos, uma vez que a polícia e a justiça pouco, ou nada, têm a contribuir com a formação e reestruturação familiar.
Ademais, o Direito Penal deve ser sempre a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade. É nessa esteira que, acerca da tipificação jurídico-penal de delitos contra a dinastia, indaga-se se seria o Direito Penal o meio necessário para a tutela da família, uma vez que o Direito Civil e o Direito Administrativo têm sido suficientes para a sua proteção, ao passo que o Direito Penal, ao intervir nas relações fraternais com intuito de salvaguardá-la, estaria ao contrário, lesionando-a.
Diante disso, serão apresentadas algumas soluções político-criminais, explanando-se as vantagens e desvantagens que trazem em seu bojo, propondo uma reflexão objetiva sobre uma das principais discussões doutrinárias da atualidade: os limites da intervenção do Direito Penal na proteção da família. Empregar-se-á, para tanto, o método dedutivo, através de análises fundamentais e qualitativas, tendo como recursos bibliografia nacional e estrangeira, periódicos e demais documentos.
Artigo Completo – https://jus.com.br/artigos/60266/delito-de-bigamia-e-o-principio-da-intervencao-minima-o-casamento-e-ainda-um-bem-juridico-penal